Rosely
Sayão afirma, no artigo “Escolas surdas”, que as escolas brasileiras não têm
dado voz aos seus alunos.
Mas muitos vão porque percebem,
com clareza ou às vezes só por intuição, que os alunos -seus filhos- podem ter
muito o que dizer na escola, mas dificilmente serão escutados, levados a sério.
E note, caro leitor: eu disse escutados, e não atendidos.
A
psicóloga acredita na voz dos jovens como correspondendo a um franco interesse
em melhorar escola e qualidade de ensino. Essa voz ainda é problemática. Se ela
não se faz ouvir de modo sistematizado, é a intenção do aluno que acaba dando
origem às grandes soluções. Gincanas, prendas, passeios... Faz-se o que, mesmo
sem confessar através de meios oficiais, a voz desse aluno deseja. E ele volta
para sua casa feliz, não sem antes passar na lanchonete e jogar seu fliperama,
ou passar horas jogando truco com os colegas.
Quando o
governo criou a hora-atividade, e ela era uma só, a escola a empurrou para o
último horário de sexta-feira. Se alguém quisesse dispor do horário para alguma
apresentação, uma visita, uma palestra, os alunos iam embora irritados: “É bem
capaz que a gente vai ficar na escola na nossa aula vaga!” O interesse do aluno
estava sendo feito. Quando se quis usar esse horário para aulas de reforço,
ficou claro que o aluno preferia a reprovação a não ir embora. Aliás, a maioria
ficava esperando o transporte, encostada no muro.
Tudo
bem: isto acontecia em uma época em que o aluno chegava à quinta série
escrevendo pisola para “pessoa”, e as
professoras da rede municipal estavam felizes, porque as mais velhas tinham
sido dispensadas (todas) e aquelas que ainda cursavam magistério assumiram.
Quantas vezes eu vi cadernos de alunos de oito, nove anos, e o conteúdo eram as
realizações da administração municipal ou estadual?
Quando
foram criadas as fichas de Correção de Fluxo, em 1998, bastava o aluno
permanecer o tempo suficiente para responder às fichas do dia e ele podia ir
embora, os professores ligarem o aparelho de som alto antes de tomarem seu
lanche e partirem – já não havia ninguém.
O perigo
era tornar as coisas certas demais. Por exemplo, a existência de uma APMF
eleita por maioria absoluta de pais, de presidentes de turma que faziam
abaixo-assinado quando um professor fazia o que aluno relata abaixo em mensagem
virtual:
VIRTUAL v7.0 - 12 de fev - Privado
Para:
XXXXXXXXXX
e ai professor o que vc acha de uma professora que propos um contrato
para nós no primeiro dia de aula com ela o contrato era o seguinte de nós
assinarmos um papel pra ela e ai todos nós seriamos aprovados na matéria dela
sem precisarmos fazer nada e tinha a outra opção que era estudarmos isto é
aceito pela direção da escola .
Talvez a
professora apenas quisesse testar a turma. Suscitar um “Oh! Não! A gente quer
aprender.” Mas existem exemplos conhecidos que não. Em 2007, uma aluna de
sétima série me mostrou um abaixo-assinado, para que eu encaminhasse, contra uma
professora que teria oferecido notas em troca da compra de brindes para uma
promoção realizada por outra escola, a qual ela dirigia. Guardei uma cópia, mas
a escola ignorou o documento. Na verdade, a própria diretora já recorrera ao
expediente em anos anteriores. Imperativo categórico: faça de cada evento, cada
palestra, cada dança, cada gincana, cada batata doada, 0,5 ponto ou mais de
nota, e no final do ano poderá ir para casa mais cedo. Então a escola passa a
ter a figura do típico esperto: ele está matando a aula, jogando três cortes no
pátio, pede um minuto de licença e entrega ao professor um papel carimbado
valendo 0,5 ponto. O professor dizer que não vai aceitar significa comprar uma
briga com direção e pedagogas. Os pais que só vão à escola quando há jantares e
presentes aparecem para reclamar esse 0,5 ponto. “Meu filho já tem 9 desses,
acha que vou perder?” A diretora fala como um vendedor de C&A: “Não, a
senhora tem toda a razão. Eu mesma vou dar essa nota.”
Logicamente,
a primeira atitude dessa diretora é fazer algo parecido com o que Rosely Sayão
diz ocorrer. As turmas param de votar em um representante, que passa a ser
escolhido dentre uma lista. O aluno sem opinião, o que vai às reuniões mas não
diz uma palavra. Aquele que a diretora visita aos sábados com presentes e
promete que vai levar sua irmã para morar com ela. Nenhum perigo de aluno com
poderes. O próximo passo é neutralizar uma provável oposição. Assim, a eleição
para professor representante de turma é cancelada, e este passa a ser opção da
diretora com as pedagogas. Mesmo o Conselho Nacional de Educação incentivando a
prática. A APMF? Fácil: não se divulga muito a eleição. Vão apenas os
interessados. Então o núcleo de educação apoia a eleição, baseada na ideia de
que ninguém se interessa, e os presentes na reunião viram heróis. Já vi
diretoras venderem coleções de livros didáticos para comprarem badulaques como
um letreiro iluminado com o nome da escola, com aplauso de APMF. Mas é comum
que o cara forte da APMF finalmente possa rebocar aquele muro que está
enfeiando sua casa.
No mais,
por que se dar voz ao aluno, se ele falará futilidades? Como diz Sayão, para
quê? Na verdade, ele já está feliz. Em 2006, minha diretora pediu as notas
finais e definitivas para o dia 20 de novembro. E fez disto uma alegria geral.
Era possível vê-la dizendo às crianças no pátio, que jogavam três cortes e
diziam estar cansadas de aula, que ela já iria acabar com as aulas, e só quem
devesse nota ficaria até 20 de dezembro. Quando o professor dizia, em sala de
aula, que as aulas iriam até dezembro, o aluno respondia de forma peremptória:
“Quem manda é a diretora e ela disse que até dia 3 todo mundo estará de
férias.”
Chegava
dia 3, e não havia alunos. Aos que vinham, a pedagoga ameaçava do portão: “Se
vocês ficarem aí, a gente vai ter que dar que dar aula. Por que vocês vieram?”
Então, eles diziam que tinham vindo para assistir às minhas aulas, e a gente
ficava assim. No segundo dia, escondiam-se chaves. E a gente estudava sentados
na arquibancada da quadra. Os alunos vinham, e já estavam aprovados há muito.
Era a cultura do gosto pelos projetos em andamento e a vontade de ver os
assuntos até o fim. Alunos que depois ganharam bolsas em faculdades. Grandes
leitores. E eles traziam os que precisavam de nota, que chegavam a ela sem
precisar de conselhos de classe. Os piores, os que passavam o ano lutando para
não ler, não escrever, não falar em público, esses não vinham. Era comum que
entrassem com processos quando reprovavam. Já era previsível: em fevereiro,
março, esses alunos já falavam que não poderiam reprovar, que eles estavam sob
proteção, e não iriam fazer tarefas. Tenho aqui comigo uma gravação feita por
um aluno chamado R., em que ele relata que a mãe recebeu oferta por uma
aprovação sem os percalços do ano letivo.
Lembro o
mês de novembro de 2008. Eu tinha duas aulas de português com a oitava série,
uma das melhores turmas possíveis, mas onde havia duas alunas, da comissão de
formatura, usando a condição para não terem que comparecer às aulas. Aos
poucos, elas estenderam esse poder à sala toda. Em uma sexta de outubro, a
diretora os colocou em um ônibus e levou a uma semana cultural em uma escola
pequena de outra cidade. Lá, essas garotas provocaram uma imensa briga, e foi
preciso sair da semana cultural e fazer o que elas queriam: uma lanchonete,
refrigerantes, e alguns rapazes para anotarem seus celulares. Na semana
seguinte, chovia havia dias. Era uma quinta, eu não tinha aula com a turma. Mas
a escola levou todos os alunos a um parque aquático. Era insuportável o frio.
Na volta, havia um acidente sério na estrada, com morte, mas os alunos estavam
com a voz mais ativa com a qual sonhavam: estavam terminando o ano letivo fora
da escola.Na semana seguinte, jogos interclasses; uma mãe foi reclamar da falta
de aula, mas foi reputada apenas como encrenqueira Na semana seguinte, sexta,
fizeram outra excursão, outro parque aquático, desta vez caro e distante. A
presidente da comissão de formatura era a pessoa que mais devia notas, graças a
tantas ausências. Como em todas as escolas, era parente de funcionário. Ela
deveria ficar, mas chorou convulsivamente. A diretora prometeu aos professores
que ela própria cuidaria para que a aluna entregasse as atividades que devia.
Mas, na segunda, primeiro dia de dezembro, já não havia alunos.
A
pedagoga se irritou com a cobrança da promessa, dizendo que os alunos não
viriam. Havia ali dois alunos da turma. Um deles pegou o celular, e outro usou
o telefone da papelaria em frente à escola. Eram quase oito da manhã. Às oito e
meia, havia 26 alunos dos 32 da turma. Estudaram, capricharam, apresentaram os
livros lidos, terminaram um projeto. Dois colegas professores aproveitaram e
foram ao Paraguai, outra foi comprar um carro no interior de São Paulo. Mas,
para o núcleo de educação, o fato de as aulas se encerrarem antes teria, porque
teria, que ser atribuída à ausência de alunos.
Para a
maioria dos alunos, a voz que eles queriam era aquela interior: alguém que
fizesse as aulas acabarem 20 dias, um mês antes, que transformasse novembro em
jogos e passeios, e que fizesse de aproveitamento algo acessório. Mais que
isto, que garantisse o recurso de recorrer ao núcleo caso o conselho final
reprovasse alguém. Diretores que leiam o pensamento, que se sintam como alunos
ávidos para saírem da escola e sentarem na lanchonete, tudo isto tem composto a
escola brasileira. Já vi o mesmo ocorrer em tantas cidades. Já era assim quando
estudava e ano letivo acabava depois de finados. Fingir que as semanas finais
serão dedicadas à recuperação, àquela que a lei diz que só pode ocorrer em
contraturno ou fora dos 200 dias letivos, e passar esses dias... Deixa pra lá.
Se os
finais de ano não forem assim, os alunos usam suas vozes e derrubam o diretor.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.