Estou pensando no fato noticiado com grande estardalhaço
nesta sexta-feira: uma briga entre professora e aluno, em escola particular.
O contexto muda tudo. Pensa-se que o poder aquisitivo
coloque os professores na condição de servos do aluno, e que este sempre vai
representar uma classe social onde não há delinquentes, ávida por ensino de
qualidade. O poder aquisitivo faria desse aluno um cliente que quer, de fato,
as coisas que uma boa escola pode lhe dar. Ledo engano.
No ano passado, tentei trabalhar em uma escola particular
que insinuava que seus alunos tinham aula de valores. De chofre, me defrontei
com a clientela menos ética da cidade de Curitiba. Valores, só os que eles
tinham nas carteiras. O nível de valores morais estava abaixo até mesmo
daquelas garotas de Cruzmaltina que pulavam o muro da escola à noite e, durante
o período das aulas, faziam streap-tease numa
casa noturna de Borrazópolis, mas que apareciam com nota e frequência no final
do trimestre, sob os auspícios do conselho tutelar e da direção do colégio. Em
um bairro nobre da capital. Havia o pré-adolescente que chegava no carro pink da mãe, e a pedagoga avisava aos
professores que aquela era notória usuária de drogas. Outro vinha na
caminhonete nova compartilhando o tabaco do paizinho, garoto de doze anos.
Poderiam ser apenas crianças, mas todo o seu arsenal era gasto para a troca de
mensagens de caráter erótico através dos aparelhinhos. Usavam capuzes apenas
para escondê-los durante as falas da diretora. Deixavam claro seu vício por
narguilé. As garotas de quinze anos erotizavam os meninos de dez, com carícias
e palavras de sentido sensual, de maneira que os pequenos já não conseguiam
permanecer nas salas de aula. Usavam o contraturno para carícias e palavras. As
de doze iam à escola apenas para manterem contato com os rapazinhos da oitava
série. Usavam a desculpa de passeios no bosque e aulas de leitura apenas para
sumirem entre chorões e moitas de capim. Já era um ritual: escrita de aluno em
fase de alfabetização, mas chegavam a não levar o material em certos dias
apenas para se embrenharem no bosque e lerem seus Harry Potter. Uma delas era filha de uma pedagoga de escola
pública. A notória vocação para a falsificação de atividades, enquanto a garota
apenas passava as manhãs aos seus aparelhinhos conversando com rapazes, deixa
evidente que a mãe é uma pedagoga de escola pública da região de Santa Felicidade.
Uma mãe, professora e pedagoga, vem me perguntar como era a elaboração de um
livro a partir de uma letra de música, que eu tinha pedido a seu filho; a
atividade vem feita com a letra dela, e o aluno, como sempre, acha que pode
terminar até a universidade com a mãezinha fazendo as tarefas. Mais que isto, o
eterno coelho que se tira da cartola ao final de bimestre: uma dança de funk a
partir de uma letra erótica e coreografia injustificável para o espaço escolar
representa 2,0 pontos da nota, tal como no bimestre anterior fora uma festa
junina, e assim ad infinitum. Três
meses e nenhum pagamento. De fato, aquilo era o paraíso para aqueles alunos. Mas
não tem nada a ver com o conceito de schola
que vem desde a Antiguidade e quem tem formação científica aprende a amar. Então,
deixa-se. Não é possível estar-se escrevendo um artigo sobre a retórica de
Aristóteles e trabalhar em um uma escola assim. Eu era o sexto professor da
disciplina no ano.
Essa escola particular não tem como formar um aluno
diferente dos que eu conheci no Colégio Nossa Senhora Aparecida, em Curitiba: o
adolescente que um dia vai manter o filho das pessoas de colégio pago sob a
mira de um revólver, ou possui uma ficha na biblioteca do Farol do Saber da
esquina apenas para pegar os livros emprestados e usá-los para enrolar
baseados. É o mais perto que tais alunos vão chegar da grande literatura. Faz
lembrar aqueles alunos que, em Cruzmaltina, levavam aqueles fabulosos volumes
encadernados dos Irmãos Grimm para os pais enrolarem seus vícios. Em toda
parte, é assim.
Mas o fato em Santos me fez pensar em outro, ocorrido em
2008, no Colégio Padre Gualter Farias Negrão, em Cruzmaltina. Daquela vez, eu
já sabia como a história iria acabar. Ocorreu com uma professora de história,
séria e compenetrada, daquelas professoras que têm um objetivo a atingir, e não
admitem que façam piada da sua aula. Mas o aluno já era um adulto. Fora nosso
aluno em 1996, adolescente, e tinha sido um grave problema. Deixara a escola.
Voltara. Adulto, era funcionário da prefeitura, e isto lhe dava prerrogativas,
como a de fazer o próprio horário ou rir do momento cívico. E de ir à escola
apenas porque a lei exigia o ensino básico para ele poder surfar no serviço
público sob os auspícios de quem exercesse o poder. Liderava um grupo formado por
um rapaz da tropa de choque do narcotráfico na cidade, vítima de abuso sexual e
pouco afeito às regras escolares. O sobrinho de um general do narcotráfico,
outro de seus acólitos, esperou anos por alguém que fizesse a diretora tremer.
Uma senhora de moral não muito ilibada para uma cidade pequena, que era a sua
amante da vez, fazia o jovem se sentir em casa. E havia o rapazinho rico, que
aos dez já circulava de moto na frente da polícia e que daria vinte anos de
vida para ter na testa o rótulo que os colegas ostentavam.
Naquela vez, a briga foi com a professora. Novamente, eles
faziam as regras. Entregaram o que quiseram para ela, sem respeito a
instruções, que reorientou para que fizessem do modo certo. Ridicularizaram-na,
mandaram que ela enfiasse o trabalho lá onde pessoas sem educação e acostumadas
a drogas não têm pudor em dizer. E a deixaram sem ter com quem reclamar: a
pedagoga também era funcionária da prefeitura. Na noite seguinte, o dito aluno
fez uma pilha de carteiras atrás da porta da sala, de modo que caíssem sobre a
professora, assim que ela abrisse a porta para entrar. E quase aconteceu. A
professora teve que ouvir desse aluno o que o rapaz lá de Santos nunca deve ter
falado ou escutado. Sob a admiração dos colegas, que tinham um líder.
Evidentemente, a escola acalmou a professora e fez com que
ela não denunciasse o aluno. O peso da proteção do prefeito pesou mais que
todas as provas. E, como sempre, a professora viu a escola como um espaço
inviolável, onde se constroem conhecimentos e até valores. Pensou decerto que
estava próxima a sua aposentadoria. Mas deixou que a escola tivesse um
precedente na sua história: o aluno era sim inexpugnável, mesmo quando
imputável criminalmente.
Se ela tivesse agido em outro sentido, teria criado talvez
um precedente para ser lembrado, sob o qual colegas pudessem um dia se abrigar.
No ano anterior, eu fora a vítima. Era apenas para fazerem
uma elaboração de numerais por extenso em inglês. Individualmente. Mas o grupo
de colegas fez os mesmos numerais e tentou me convencer de que não houvera
cópia. Como não quiseram refazer, cancelei a atividade. Então o aluno maior,
com um hálito pestilento de cachaça, mesmo sendo motorista, arrolou os seus
acólitos e eles tentaram fazer um abaixo-assinado. Eu mesmo lhes dei o telefone
do núcleo. Passaram dois meses matando aula, jogando baralho, enquanto um terço
da turma assistia às aulas. O núcleo veio para intervir, mas disse que de fato
eu não vira os alunos copiando um do outro. Eu pedi que fizessem um cálculo de
probabilidade para verificarem a possibilidade de cinco alunos elaborarem o
mesmo conjunto de algarismos. Aguentei a ira da diretora, que deu razão aos
alunos, e achava que não se pode recusar nada do que um deles faça, mesmo que
não corresponda ao pedido. A funcionária do núcleo também deixou evidente que
entendia tanto de pedagogia e metodologia de ensino quanto de física quântica
ou sânscrito, outra daquelas pessoas formadas em faculdades de final de semana,
que um dia ficam felizes porque conseguiram derrubar uma deliberação que estabelecia
que 2 + 2 = 4, e veem o fato como progresso.
O que ocorreu em Santos é rotina nas escolas brasileiras.
Não vai mudar. As coisas se tornam piores para o professor e para alguns alunos
que, de fato, querem da escola aquilo que, por princípio, ela deve oferecer. Em
Santos, o fato foi gravado. Sorte de todos. Hoje, gravar as aulas é a única
forma de se desmascarar a indústria do aluno vítima e dos pais que já
sublinharam na lei tudo aquilo que eles podem usar para que seu filho, como os
alunos de Cruzmaltina aqui citados, sejam aprovados. E possam todos correr para
o bar mais próximo comemorar.
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