Madrugada em Curitiba. De manhã, as pessoas que buscarem na
internet as últimas notícias irão se deparar com a 5ª capital mais violenta do
país, segundo reportagem da revista Veja. Estupros, assaltos, crimes motivados
por drogas, pessoas degoladas ou queimadas vivas. Tudo aquilo que vem com um
endereço definido: aquelas regiões para onde vão as pessoas que um dia roubarão
sua casa ou viciarão seu filho em alguma substância. Mas que, por enquanto, estão rindo à toa com o modelo de educação curitibana.
Os endereços estão nas notícias. E tantas vezes colegas
professores me diziam que não adiantava morar em uma região mais desenvolvida
da cidade, que era de lá daqueles colégios que os bandidos vinham. A primeira vez em que ouvi
falar em Vila São Pedro foi assim: uma pedagoga do bairro do Boqueirão me
disse que as escolas daquele lugar eram referência em problemas de violência.
Na verdade, eu já sabia que no bairro do Xaxim existiam os criadouros de gente
assim. Uma diretora de uma grande escola em Araucária já havia me falado que,
quando estudante, prestou estágio no Colégio Nossa Senhora Aparecida e que,
sendo ela católica, creditava o fato de lá não ocorrerem tragédias diárias à
intervenção da santa. Esta já deve ter jogado a toalha. Em dezembro de 2010, a
diretora, uma senhora que se refere a essas ações como se risse das violências
do rato Jerry, me contou que seu carro já fora incendiado por alunos e que o
fato saíra até na televisão. Naquele dia, eu telefonei para o meu núcleo e
disse que não trabalharia em tal colégio, mesmo que eu tivesse que abandonar a
profissão. Acabei parando lá no meio do ano, como situação provisória. Um
desses lugares com um forte cheiro a infiltração e a tabaco molhado, bastava
olhar atrás das janelas e o susto aumentava. E como eu ia para lá depois de
trabalhar em uma escola onde os alunos tinham aula de valores morais,
diariamente, antes de irem para a sala, era estranho ver que casos assustadores
eram relatados por todo mundo como se o Jerry houvesse incendiado o Tom. Duas
semanas depois de conhecer o oitavo círculo do Inferno, a professora de
ciências me chamou ainda no corredor e me disse que um aluno acabara de matar um
outro, com uma paulada, por sobre a cabeça dela. E ela dizia isto com aquele
tom de “um cano estourou e molhou uma menina”, coisa pouca, rotina de escola, é só passar um pano.
Os alunos também contaram a história na sala. Estes, com admiração. Para eles,
era mais uma fase de algum game, que
eles determinavam lá no íntimo que um dia iriam superar. Devem estar esperando
por isso, mais do que sonham com casamento ou formatura.
O fato é que dois dos alunos envolvidos na história de
assassinato passaram a me fazer ameaças, a impedirem qualquer possibilidade de
concluir uma aula. Não eram casos isolados. Lembro a tarde em que uma senhora,
a pedagoga mais velha, contou que a filha estava trabalhando no exterior, no
projeto que agora localizou o bóson de Higgs, e que na época fora notícia devido a
uma experiência com a velocidade da luz. A turma, uma sétima com cara de ensino
médio e conhecimento de pré-escola (a figura colocada no final do parágrafo
mostra que não é exagero) começou a debochar de tudo que ela falava, até do
nome da moça. Os olhos da senhora se encheram de lágrimas, as risadas eram mais
fortes que seu orgulho, e ela saiu da sala. No entanto, alunos como esses, que
ameaçam e insinuam suas ligações com a bandidagem, são modelos de conduta para
muitos. Tanto que a própria diretora e o responsável pelo setor Bairro Novo sentiram
as dores do garoto que ameaçou destruir meu carro, quando por isto pedi ajuda na
Delegacia do Adolescente. As garantias que eu recebi de segurança lá na
delegacia foram refutadas pelos dois acima, além de ambos serem
adestrados para verem na conduta criminosa dos alunos apenas a ação de ratos de
desenho animado. "Aqui é assim, não se muda a sociedade." Está em ata: a diretora diz que nas casas eles são assim e que
só vão à escola para comer e que, cognitivamente, eles não têm potencial para
aprender. Perguntei se havia um diagnóstico. Mas é essa crença na
impossibilidade de o aluno de classe baixa aprender que justifica, nos
conselhos de classe, a aprovação, como se fosse uma explicação técnica. Tanto
que, quando deveria ter havido a reunião pedagógica do bimestre, a diretora
chamou um radialista e os professores passaram a manhã dançando, mesmo ela
tendo anunciado dois dias antes que pelo menos 70% dos alunos passariam apenas
por conselho de classe. Nenhuma medida. Lá estavam os cestos para lixo
reciclável que o vice-governador levara dois dias antes; um deles já estava
quebrado. Então, as palavras eram: “Para que a gente ficar falando sobre
alunos, em uma manhã de sábado, se não adianta mesmo? Vamos festejar!” (O exemplo abaixo é de um daqueles alunos em idade de prestar vestibular, mas que se mantém em uma sala de sétima série recusando qualquer ação que possa construir nele alguma habilidade positiva. As que escola vem construindo ele abraça com todos os reais.)
Mais um:
De uma garota, após umas quatro aulas dedicadas a mostrar o gênero artigo de opinião, a fazer modelos com a sala, a explicar as etapas (planejamento, versão preliminar, versão refeita, edição...) de produção e suas condições, tudo para que enfim se ouça: "A gente aqui só sabe falar sobre sexo e drogas." O interessante é que o conteúdo já aparecia como trabalhado (em uma aula, sem nenhuma especificação de gênero. A velha história da professora que entende ainda menos que o aluno).
Quem se lembra da inscrição que Dante cita como afixado no umbral
do portão do Inferno sabe o que deve estar escrito sob a tinta mofada daquele
colégio: Lasciate ogne speranza, voi ch’intrate
(“Deixai toda esperança, vós que entrais”). Mas talvez o verso de Terêncio
se enquadre melhor naquele cenário: Homo sum:
humani nihil a me alienum puto (“Homem sou: nada do que é humano
reputo alheio a mim”). E sabe que a primeira é cuidadosamente mantida pela
comunidade escolar. Como um Cérbero de cabeças anencéfalas, ela crê que um
ensino de qualidade demanda trabalho, e deve ser evitado, mesmo que para isso
se queimem carros de diretores. Afinal, aqueles alunos de sexta série se
recusavam a escrever a própria biografia para não ter que falar os nomes dos
pais. Alguns alegavam não saber. O fato de alguém falar um nome em voz alta era motivo
para agressões. Dessa forma, deixa-se a atividade de escrita e se parte para
uma compreensão de texto, “História de uma gata”, que Diana Barros recomenda
como forma de se falar sobre multissignificação. A biografia fictícia só dois
ou três alunos em cada sexta copiaram. Apenas quatro alunos com cadernos e nenhuma
providência tomada. Não têm cadernos, que comam brioches, é a ordem da direção. Avisava-se aos alunos que eles não entrariam sem uniforme,
mesmo uma lei federal proibindo essa ação. Mesmo que o uniforme servisse apenas
para se manchar com sangue de colegas ou professores. Mas pedirem-se cadernos e
atividades, ah, conta outra, né!
Evidentemente, só aqueles quatro alunos teriam nota. Porque
atividade oral só a aluna que viera de Minas fazia. E leitura, ela e mais uns
três. Estão dentro das estatísticas da diretora acerca dos 30% que passam com
nota. Era comum entrar nas salas e encontrar uma garota (que os professores
diziam ter piolhos) com suas colegas dançando sobre a carteira, e a descabelada
chegava a abaixar a tão cobrada calça do uniforme para provocar um garotinho que
a ignorava. Provar à garota de fora que elas, em vez de se dedicarem à escola,
já tinham uma vida sexual ativa, era a única forma de se acharem superior à
outra. Mas, sobretudo, para impedir que as aulas transcorressem sem a cobrança
de intervenções. O recado era que nenhum pai se importava, fora o da garota de
Minas. Quando se avisavam os pais, eram comuns respostas como esta aqui:
Que lindo exemplo de fêmea protegendo a cria! As atividades do aluno (todas) se resumiam a isto que se vê abaixo:
Mas a mãe quer insinuar que o filho nem leva cadernos à sala
porque o professor faz a chamada individualmente, à carteira, porque lá eles
mentem os nomes. O medo é apenas relacionado à falta, pois ninguém se preocupa com aprendizagem. Repete o chavão do direito, que deve ter sido o ápice da educação de quem escreve "ateção" e "aulto", o que, para ela, asseguraria a seu
filho o direito de passar dois meses sem levar material à aula e obter nota. Foi preciso
abandonar os cadernos e levar papel sulfite para a sala. Talvez o enxofre das folhas
deixasse os alunos mais à vontade. Mas o fato é que elas voltavam vazias. Como
nunca adiantou avisar pedagogas, o fato era registrado por uma delas em ata e
eu avisava os pais. “Seu filho não está fazendo as atividades. Ele vai terminar
o bimestre sem nota se continuar assim. Por que não traz material para a aula?”
A resposta da mãe copiada acima é um exemplo claro do modelo
de educação vigente no Colégio Nossa Senhora Aparecida. Quando se diz que o
filho não entendeu, o que se está dizendo, em verdade, é: “eu não sei fazer
para ele; peça algo que eu mesma possa fazer e ele entregar como trabalho.” Ou
o truque de dizer que a matéria não foi explicada, mesmo quando se gasta todo o
arsenal possível para isto: xerox, data-show, esquemas na lousa. Fica evidente
o acordo tácito que leva uma diretora a dizer que seu aluno não é capaz de
desenvolver habilidades, nem querendo. Ele pode decorar ou copiar; não muito, e que não passe de um assunto. Na verdade, o
modelo de tarefa é algo assim: a professora de português que nunca passou em
concurso, mas é funcionária do estado há décadas, conta a uma mãe, na entrega
do boletim, que o filho foi mal na prova sobre mau (com u) e mal (com l). Parece inacreditável: em segundos tudo aquilo que os governos
fizeram para convencer os professores de que a década de 70 já acabou cai por
terra. É possível ouvir a Universidade do Professor aparecendo do quadro do Fantástico sobre fantasmas, o site
Dia-a-a-dia Educação invadido por hackers,
os livros didáticos preparados pela SEED boiando no Rio Belém, a TV Paulo
Freire tomada por locutores de supermercado, todos os NRE-Itinerante trocados
por shows daquele traficante que aparece no YouTube ensinando o filho de dois
anos a usar maconha. Nós voltamos ao tempo em que uma professora recebia
dinheiro público para dar provas sobre regras decoradas de gramática, que
apenas o exemplo já dá conta de ensinar. Certamente essas provas são com
exercícios, tal como a Linguística Aplicada diz para não se fazer porque não
funciona, pois lá os alunos se recusavam a copiar até a data da lousa se o
professor não afixasse um carimbo em qualquer parte creditando meio-ponto pela
ação. Claro, o professor que está há mais de um concurso se mantendo como funcionário
do estado, sem passar em nenhum, é exatamente como o aluno que só tira o lápis
do estojo se a ação valer nota. E só consegue nota em concurso se o assunto não
passar de uma regra. E é para ele que diretores e chefes de setor trabalham.
Lembro uma professora que, há poucos anos, era a segunda classificada de uma
lista de professores temporários. Eu estava lá porque levei uma colega. Então,
a conselho do responsável por distribuir as aulas, ela procurou uma pessoa que
ganha a vida fazendo trabalhos escolares e dali a pouco voltou com um diploma
de pós-graduação, que entregou ao rapaz na frente de quem estava lá. Fui eu que
dei o telefone do núcleo para que a primeira colocada pudesse reclamar.
Resposta oficial: “Você acha que a gente vai ficar contra uma pessoa que um
funcionário nosso protegeu? Parente de uma vereadora!” (Vou ver se gravo aquela
pessoa contando o fato e depois coloco aqui.)
O resultado está nas escolas. Mas é melhor usar uma outra
postagem para mostrar como a professora da provinha dá seu conteúdo. Que tal
olharmos o livro de chamada dela, com conteúdos e notas? E o resultado de seus
alunos, lógico. (Não sei se é possível colocar aqui figuras tão grandes.) Por que o analfabetismo é visto como sucesso e propugnado pela
diretora como resultado esperado?
Não se pode esquecer da inscrição de Dante.
Ela explica.
Por isso, é difícil portar a esperança quando o sistema a quer do lado de fora. Ou quando pessoas que fizeram da escola alguma esteira sobre o qual o aluno recebe seu carimbo insistem em manter a situação sob fracasso. Como seria dar aulas para a professora que comprou certificado e não passa em concurso, se ela tiver que cumprir os conteúdos, a metodologia e a avaliação tal como estão nas diretrizes curriculares? O perfeito-idiota é uma instituição escolar. Mexer com ele representa correr risco de aparecer nas notícias da manhã. Seria tornar o funcionário do núcleo de educação que a estas horas deve estar bebendo seu café para depois ir fumar na calçada um pouco preocupado com a qualidade do ensino. Mas, ele cuida pessolamente que ninguém mexa na inscrição da porta do Inferno. É dele, ele viu primeiro...
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